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26 de ago. de 2013

Sonata K. 69 de Scarlatti: visionarismo antecipador de Beethoven e Chopin

Lindsay Sheldon
Uma coisa que eu já suspeitava antes de ouvir o álbum com 17 sonatas tocadas pela Zhu Xiao-Mei o fato de Domenico Scarlatti ser o compositor para teclado mais visionário da história. Podem alegar Bach, mas o alemão é único pelo conjunto da obra, vasta por sinal. Já o italiano, especificamente no que tange aos teclados, é imbatível em termos de novos caminhos desbravados nas suas 550 sonatas. Qual compositor que viveu entre os séculos XVII e XVIII eventualmente soa como Beethoven, Chopin e até como Prokofiev?

Eis uma análise da obra elaborada pelo crítico e escritor Robert Cummings:
De todas as 550 sonatas de D. Scarlatti, poucas têm indicação de andamento. Muitas dessas peças anteriores, e entre elas está a Sonata em Fá menor, são executadas geralmente em adagio. Sacheverell Sitwell, biógrafo de Scarlatti, agrupou as sonatas de acordo com determinadas características em comum e a sonata K. 69 foi para o conjunto das "sonatas Adagio".

A peça se baseia num tema recorrente, cujo núcleo rítmico provoca um efeito quase hipnótico que se acentua progressivamente. De certo modo, a peça apresenta um elã que só apareceu bem mais tarde, como observa-se no 1º movimento da famosíssima op. 27 de Beethoven. Porém aqui, na Fá menor de Scarlatti a atmosfera é mais sombria, o tema e as células rítmicas do entorno aparecem persistentes e lúgubres.

De modo geral, a peça parece um manto a recobrir algo que vai sendo revelado aos poucos, em camadas de grande profundidade e complexidade. Não obstante ritmo e melodia fluírem inabaláveis, a emoção se intensifica a partir da metade e a tensão acumulada é resolvida quando um tom funéreo é ouvido nos baixos, quando acordes sombrios e trinados soturnos encaminham para o fim fatídico.

Naturalmente, o ressoante piano moderno permite um novo lustro às velhas partituras e o caso da sonata K. 69 é emblemático, pois se você tocá-la a la tradição cravística, pouco ou nada do visionarismo scarlattiano irá transparecer, como por exemplo nesta interpretação:

Agora ouviremos toda a magnificência proporcionada pela grande Zhu Xiao-Mei, que permanecendo fiel ao espírito de sonata adagio, nos descortina um mundo de infinitas nuances e maravilhamentos.

Como você verá, a análise transcrita acima somente cabe quando esta sonata é tocada explorando a pleno os recursos sonoros do piano atual, pois certamente D. Scarlatti teria gostado de ver a sua obra prima transcendendo aos rígidos limites dos instrumentos da época, aliás, alguns revisores não têm sequer certeza de que Scarlatti tenha destinado as suas sonatas para cravo, talvez, como era costume daqueles tempos, tenha escrito para qualquer espécie de teclado, uma vez que a característica básica do gênio é trasbordar à sua contemporaneidade.

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