Na hora de escolher um piano para chamar de seu (na
realidade acho que é o contrário, o piano é que escolhe o dono), você se vê
diante de muitos dilemas: novo, usado, cauda, vertical, meio-usado, marca,
modelo, pechincha, etc. E a complexidade da escolha só aumenta quando você leva
em conta que essa máquina maravilhosa concebida para produzir notas musicais pode
pesar mais de 300 kg, tem de 14 a 22 mil peças móveis e aproximadamente 230
cordas que exercem pressões combinadas de 15 a 25 toneladas sobre a sua
estrutura.
1) Integridade física
Assinalemos aqui que o piano não existe para ser belo, uma
peça esplêndida de carpintaria e marchetaria, ademais, ele pode até ser bem
surrado e mesmo assim não perde a sua excelência como instrumento musical.
Contudo, determinados fatores podem simplesmente decretar a morte do piano,
tais como as diversas formas de corrosão, ataque de insetos e roedores, umidade,
longo tempo de armazenamento em ambiente sujeito a grandes variações térmicas,
etc.
Isto quer dizer que não basta ao piano ser bonito por fora e
detonado por dentro, apesar do contrário ser verdadeiro. Por isso, os leigos
deveriam tomar cuidado quando se apaixonam por uma joia de móvel, se não pretendem
levar para casa apenas uma mobília exótica.
É claro que as pessoas não seguem esse conselho, pois elas
estão muito mais interessadas em madeiras ricamente trabalhadas envernizadas
impecavelmente, do que num aparato acusticamente maravilhoso. Para ilustrar o
quanto o senso comum está distante da expertise de um grande mestre, transcrevo
abaixo* o relato da peregrinação que o pianista canadense Glenn Gould fez em
busca do piano perfeito, aquele que foi usado nas últimas gravações da sua
carreira – ao final ele acabou optando pelo mais instrumento mais ordinário e
surrado jogado no fundo da loja, apesar de ter à disposição dezenas de modelos reluzentes
novos e usados.
2) Toque e equilíbrio mecânico
Oferecer um toque suave é uma virtude essencial num piano,
já que o teclado é o único ponto de ligação entre o executante e a maquinaria
escondida embaixo do tampo. Além disso, é imprescindível que um bom piano
ofereça a mesma tocabilidade em todas as teclas, ou seja, que você seja capaz de
experimentar o mesmo toque ao longo de todas as oitavas.
3) Equilíbrio e qualidade tonal
A virtude do equilíbrio é uma das mais requisitadas num
piano. Ela define a capacidade do instrumento de gerar sons uniformemente
distribuídos nas três regiões: graves, médios e agudos. É como se coexistissem
3 pianos num só. Quanto menos eles forem discerníveis ao ouvido, tanto melhor
será o piano. A ruptura entre as regiões foi agravada pela adoção das cordas
cruzadas, um artifício criado para aumentar o comprimento dos bordões, mas que
introduziu no piano um momento de quebra timbrística no exato ponto da junção em
que as cordas mudam a inclinação. Ainda bem que os projetos de escala bem
executados minimizam essa deficiência ao ponto dela se tornar imperceptível aos
ouvidos menos treinados.
Qualidade tonal:
Baixos claros e bem delineados, não débeis ou distorcidos,
médios claros e sem estridência, e agudos atuantes com som semelhante a sinos
são alguns dos predicados que se espera de um bom piano.
4) Estabilidade da afinação
Não se trata aqui de se discutir se o piano segura os 440 hz
do Lá central. Mais importante do que isso é o piano segurar algum padrão de
afinação, mesmo que mais baixo, pelos menos ao longo do intervalo de 6 meses em
que se espera que ele seja afinado. O fato do piano conseguir ser afinado no
padrão de 440 hz é importante apenas para os pianistas envolvidos em gravações,
ou execuções conjuntas com outros instrumentos.
5) Inarmonicidade, quanto menor melhor
Você pode não sacar nada de teoria acústica, mas o seu
ouvido tem mais ou menos prazer ao ouvir um determinado piano. E parte dessa
percepção se deve ao fenômeno da inarmonicidade,
ou seja, da estranha propriedade que os pianos têm de se afastarem do piano teórico
ideal definido pelas leis da física. No piano ideal os sons harmônicos são
múltiplos perfeitos da nota fundamental. Entretanto, no piano real e imperfeito
a rigidez inerente à estrutura das cordas provoca um desvio progressivo das
notas parciais (harmônicas), que aumenta na proporção da diminuição do seu comprimento.
Por isso os grandes pianistas adotam como seu instrumento padrão o grande piano
de concerto, cujo comprimento de mais de 3 metros ajuda a minimizar os efeitos
da inarmonia intrínseca aos pianos.
A conclusão óbvia é que quanto menor é o piano,
menores são as suas cordas e maior será a sua inarmonia – por isso os pianos
pequenos soam piores – e isso é uma limitação física instransponível, conforme
foi abordado nesse artigo:
Cordas de pianos velhos podem estar
oxidadas, principalmente os bordões, cujo sintoma audível acontece quando são
percutidas: produzem um som oco e "balofo".
6) Riqueza tonal
A qualidade do timbre é tudo num piano, pois de outra
maneira você preferiria adquirir um tosco piano digital, que não passa a ideia
de menor pulsação de vida, ou seja, é um instrumento morto por excelência.
Assim, por ser a beleza do timbre a virtude mais primordial
do piano, há um grande contingente de pianistas que só cogitam comprar
"pianos alemães velhos", por acharem que somente este tipo de
instrumento antigo é (ou foi) capaz de atingir a excelência acústica.
Este artigo
menciona um depoimento emblemático sobre o assunto que ilustra cabalmente o que
estou falando:
Veja o som produzido
por um modelo antigo do Chickering e sinta a diferença. Era algo caloroso e magnífico, quase
sinfônico. Era suave e perfeito para os
melhores repertórios. Em comparação,
esses novos pianos chineses são desafinados, desajeitados e pontiagudos. O som parece com o de uma marimba. É impossível tocar Schubert ou Brahms nesse
lixo. Ninguém quer ouvir essa
coisa. Eu quero voltar àqueles velhos
tempos em que os pianos tocavam música de verdade!
Entretanto, comprar um piano velho não é uma tarefa tão simples,
pois a possibilidade de adquirir um instrumento irreformável ou com altíssimo
custo de restauração é um fantasma sempre presente.
7) Potência sonora
Quando você experimenta vários pianos percebe que alguns
deles são pouco audíveis. Isto significa que se você levar um desses mudinhos
para casa, certamente acabará pegando tendinite nos braços na tentativa de
arrancar fortíssimo quando for necessário. Por outro lado, existem os pianos
gritões – ironicamente, alguns alemães antigos – que berram o tempo todo, independentemente
de você estar tocando pp ou FF. Com isso, chegamos à conclusão de que a
característica da goela do piano é um fator importante na hora de se deixar
apaixonar, ou guardar respeitosa distância daquele instrumento.
*Tendo resolvido que as instalações para gravação da CBC
eram tecnicamente inadequadas, Gould voltou-se ao estúdio da Columbia na East
Thirtieth Street em Manhattan, que a CBS, por imposições econômicas próprias,
estava a ponto de fechar. Variações Goldberg foram uma das últimas poucas
gravações feitas lá. Mas Gould tinha uma outra razão para essa viagem a Nova
York. Depois de todos os anos com um Steinway, ele queria procurar um piano
novo, e embora quisesse experimentar mais Steinways, e especialmente os Steinways
fabricados na Alemanha, também quis experimentar Bechsteins e outras marcas.
Sua pesquisa por fim levou-o a um Yamaha novo na vitrine da Ostrovsky Piano
Company, exatamente atrás do Carnegie Hall. Experimentou tocar aquele Yamaha
novo e alguns outros instrumentos em exposição, um espetáculo tão pouco usual
que a loja tentou fazer uma camuflagem. "Para assegurar a privacidade
dele", de acordo com Robert Silverman, que havia arranjado a
experimentação, "Ostrovsky pendurou lençóis nas vitrines da frente.
Imagino o que as pessoas que passavam por aquela rua movimentada podem ter
pensado, enquanto Gould tocava – apenas com uma lâmina de vidro funcionando como
barreira de som."
Gould não ficou atraído por nenhum dos pianos em exposição
na vitrine da Ostrovsky, mas quando já estava saindo, vislumbrou um Yamaha
bastante usado num corredor dos fundos, e resolver experimentar aquele. Ninguém
queria que ele usasse um instrumento tão velho, mas ele insistiu. Foi como uma
redescoberta do maltratado Chickering do chalé à beira do lago de sua
juventude, como o momento em que o príncipe descobre que o sapato de vidro
serve no pé da Cinderela. Era "exatamente o instrumento que ele estava
procurando", disse Silverman. "Ele ligou para dizer que a longa
procura estava acabada." Gould comprou o velho Yamaha na hora e mandou que
fosse enviado para a Thirtieth Street, para a gravação das Variações Goldberg. "Sentimos
uma grande alegria e realização", escreveu Debbi Ostrovsky para Gould,
"em ter cuidado de um instrumento que, afinal, vai achar seu lar com
você."
Livro Glenn Gould: uma vida e variações de Otto Friedrich - Capítulo:
Variações Goldberg II, página 307. Disponível no Google
Livros.
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