Os felizes proprietários de pianos sabem que a vida dos seus instrumentos depende umbilicalmente de bons afinadores. Contudo, como ninguém pode lutar contra o fato de que toda a regra tem exceção, no nosso caso, os afinadores também possuem o seu calcanhar de Aquiles.
E a principal divergência acontece na hora da escolha de um novo piano: até que ponto é possível ao pianista se fiar na preferência do afinador? Certamente, este profissional pode dar contribuições imprescindíveis sobre o diagnóstico geral do instrumento, infestação por insetos, estado da mecânica, fissuras na tábua harmônica, condição das cordas, etc, porém, no momento de bater o martelo, o pianista deve tomar uma decisão soberana, sob pena de se arrepender depois.
A defecção dos afinadores de piano.
Desde 2003, quando compremos o nosso piano, nas minhas interações com estes profissionais tenho encontrado um denominador comum perturbador: eles não aceitam um princípio fundamental para alguém que tenha a mínima familiaridade com o instrumento. Os afinadores rejeitam cabalmente a ideia de individualidade de cada piano, ou seja, para eles as características sonoras, timbre e usabilidade do mecanismo dependem única e exclusivamente do SEU trabalho de afinação e regulagem. Entretanto, sabemos visceralmente que se vários pianos novos da mesma marca forem minunciosamente testados (mesmo depois de regulados e afinados da mesma maneira), todos eles apresentarão resultados divergentes, claro, firmemente negados pelos afinadores.
O dilema pode ser ilustrado com uma sentença absurda: caso os afinadores tivessem razão, todos os pianos seriam iguais, o que invalidaria a subjetividade da escolha do pianista. Só para exemplificar o quanto os afinadores estão errados, transcrevo aqui a busca pelo piano perfeito perpetrada pelo grande pianista canadense Glenn Gould antes de fazer a última gravação da sua vida, a produção do disco “Variações Goldberg” de Johann Sebastian Bach:
Gould não ficou atraído por nenhum dos pianos em exposição na vitrine da Ostrovsky, mas quando já estava saindo, vislumbrou um Yamaha bastante usado num corredor dos fundos, e resolveu experimentar aquele. Ninguém queria que ele usasse um instrumento tão velho, mas ele insistiu. Foi como uma redescoberta do maltratado Chickering do Chalé à beira do lago de sua juventude, como o momento em que o príncipe descobre que o sapato de vidro serve no pé da Cinderela. Era 'exatamente o instrumento que ele estava procurando', desse Silverman. 'Ele ligou para dizer que a longa procura estava acabada.' Gould comprou o velho Yamaha na hora e mandou que fosse enviado para a Thirtieth Street, para a grafação das Variações Goldberg. 'Sentimos uma grande alegria e realização', escreveu Debbi Ostrovsky para Gould, 'em ter cuidado de um instrumento que, afinal, vai achar seu lar com você.'*
Moral da história: no momento crucial de eleger um piano como seu, deixe de confiar no afinador na hora decisiva de bater o martelo e escolha aquele que mais lhe encanta. O meu exemplo foi sintomático, pois acabei optando por um instrumento surrado, cheio de riscos e com marcas de copo na tampa superior guiando-me apenas pelo timbre e não me arrependo deste critério, pois se as vistas são facilmente enganadas, os ouvidos jamais se deixam ludibriar e acabam cobrando um alto preço se os sons produzidos não conduzem realmente a um raro prazer.
* excerto do livro “Glenn Gould – Uma vida e Variações” de Otto Friedrich, Editora Record, páginas 307, 308.
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Foto: Piano tuner marks 25th year at Newport jazz fest.
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