Tradicionalmente, ao longo da história da humanidade, a solidão tem sido saudada como uma instância necessária e imprescindível ao crescimento espiritual. Entretanto, no último século temos assistido a completa derrocada deste preceito, substituído pela ânsia conectiva cada vez mais crescente.
Ora, para entender o alimento proporcionado pelo deserto, é necessário relembrar os vários tipos de alimentos que nos sustentam: ar, água, luz, comidas, espaço, manifestações artísticas e interações humanas. Sabendo-se que a falta ou deficiência de alguns destes nutrientes é o ingrediente que torna as viagens e as ausências tão penosas, os viajantes possuem o dom de adaptação rápida às vicissitudes e à solidão impostos durante a jornada.
Quando falamos de deserto, estamos abordando justamente a antítese do alimento, representada pela privação, e o princípio do jejum tem sido preconizado historicamente como um meio de atingimento do autoconhecimento e a purificação da carne... até o advento da era industrial, quando a renúncia caiu de moda em prol do gozo ilimitado dos prazeres sensoriais.
Só para sacudir a poeira do esquecimento, eis alguns preceitos medievais que pregavam enfaticamente a via do deserto como o caminho do autoconhecimento:
… entretanto, desde o começo do século XI, como resultado da descompartimentação do mundo e da incitação vinda das cristandades orientais, face à concepção propriamente latina do monarquismo, a de Bento de Núrsia, uma outra concepção era proposta, gabando a solidão e concentrando o privado na pessoa. Propagado a partir da península italiana, o apelo à condução da luta contra o demônio, não mais na segurança da companhia, mas a sós, no pleno perigo, acabou por invadir o Ocidente inteiro nas últimas décadas de século XI. Tal desejo de atingir mais perfeição no deserto, no isolamento, levou Robert de Molesmes a afastar-se dos usos clunisianos. Ele fundou Cîteaux. Os cistercienses pretendiam retornar à letra das prescrições de São Bento; portanto, permaneceram fiéis ao princípio da vida comunitária. Quiseram, contudo, afastar-se mais dos tumultos do mundo, protegendo-se atrás de uma barreira mais estanque, essa auréola de solidão rude cuja integridade defenderam ciosamente em torno de cada abadia; além disso, exigiram ao menos do dirigente de cada equipe que levasse mais longe o retiro individual: dando o exemplo, o abade cisterciense isolava-se no tempo do maior perigo, à noite, em uma cela; ele escalava um degrau a mais na prova, sendo seu dever velar só, nos postos avançados. Os cistercienses ativeram-se a isso. Os cartuxos foram mais longe: não escolheram apenas retirar-se em um deserto mais escarpado, viver entre os animais selvagens, na montanha, espaço simbólico da ascensão espiritual; sua regra limitou para todos a vida comum a períodos muito curtos, alguns exercícios litúrgicos, algumas refeições festivas; fora desses episódios, cada religioso encerrado no silêncio da sua própria cabana devia orar e trabalhar como verdadeiro monge, isto é, sozinho.*
Pois bem, na minha última viagem de uma semana, resolvi me atirar no deserto metafórico sem celular e sem acesso a computador e me senti muito bem. As redes sociais, os Blogs e as interações virtuais ficaram em animação suspensa e sobreviveram muito bem obrigado, enquanto a minha cabeça se alimentou da quietude do deserto. Finalmente compreendi porque os medievais preconizavam a quietude e o silêncio como uma forma sublimada de prazer, hoje somos obrigados a entender porque os especialistas suplicam para desligarmos os nossos gadgets em determinadas horas do dia, tudo para que um pouquinho do deserto penetre nas nossas mentes e restaure o caos instaurado pela cacofonia tecnológica.
* excerto da Coleção “História da Vida Privada” dirigida por Philippe Ariès e Georges Duby, volume 2, “Da Europa feudal à Renascença”, página 500, Companhia das Letras, 1999.
A solidão faz muito bem. Faz com que reflitamos e possamos analisar o que acontece na nossa vida.
ResponderExcluirA maioria se preocupa muito em fugir da solidão, em se comunicar praticamente 24h/dia. Até nas redes "sociais", onde quantidade é sinônimo de status e elegância.
O resultado são amizades, coleguismos e namoros de baixíssima qualidade.
Sofrem demais no amor porque não cultivaram a inteligência emocional. Em vez de compreensão, tolerância, diálogo, investem em beleza, em cirurgias estéticas, em preocupação com o corpo.
Quantas mulheres se preocupam com o pneuzinho, com barriguinha, com seios caídos? MILHARES.
Pobres criaturas que não tiveram chance de raciocinar.
É o mal da televisão. "Compre, compre, compre". "Tenha um pênis maior".
"Perca 5kg rapidamente".
"Fique linda usando este depilador que corta o fio pela raiz" (...).
Pessoas que são robôs fazem tudo que está na moda. Caíram na lábia do marketing.
Infelizmente não inventaram a mudança cerebral. Muita gente está precisando.
também acho importante momentos no deserto (é incrível mas é uma prática para poucos), e em parte, vivo em um "mundo a parte", onde a parafernália "moderna" não é prioritária (não me tira aquela caminhada na rua), mas também hoje vejo que alguns "preceitos medievais" utilizados hoje são idéias iluministas (isto é: tipo de doutrina intelectual espiritual que acredita num despertar(iluminação de graça) de uma hora para outra, dessa crença se alimentam muitas religiões e ordens esotéricas, fundamenta a crença em discos voadores, em fim do mundo e etc...resumindo... é uma doce ilusão que todos estamos sujeitos a passar e na maioria das vezes, precisamos passar para chegar em outro degrau evolutivo), mas isso não é uma crítica, somente uma reflexão, nem penso que esgote o assunto, até pelo fato de que falar nesse assunto e fazer-se entender não é muito simples.
ResponderExcluirtexto muito bom .. !
ResponderExcluireu nunca esqueço de me isolar em algum desero
ResponderExcluirque bom ver alguém abordando esse assunto
Eu sou muito introspectiva e percebo que momentos de reflexão são necessários pra maturidade, como tudo na vida tem suas vantagens e desvantagens às vezes sou chamada de "esquisita".
ResponderExcluirOlá! Navegando pela nossa blogosfera encontrei teu cantinho aqui!
ResponderExcluirAdorei ... muito bom encontrar coisas novas, outros papos, possíveis amizades, um leque de possibilidades.
Aprecio a inteligência, a elegãncia e isso com certeza se aplica ao teu blog! Showwwwww!!!!
Parabéns de coração.
Já estou seguindo. Se puder (ou quiser) visita meu cantinho, será muito bem-vindo!!!!!
Bj doce
www.jcpensamentosdemulher.blogspot.com
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(¸.•´ (¸.•` *♥ Jussara Christina ♥*
Claro que sim Jussara, já estou seguindo!
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