A crise econômica fez a sua primeira vítima no mundo real, ao ter atingido duramente a indústria automobilística global. E por quê? Desde a inauguração da produção em massa na indústria automobilística em 1904, o carro ultrapassou o simples papel de meio de transporte, para se tornar no símbolo emblemático do século da revolução industrial.
Hoje o automóvel é o ápice de várias atividades: arte, mecânica, eletrônica, joalheira, bijuteria, ciência, artesanato, engenharia, design, glamour, química, mineração, etc. Ele é a culminância do processo que construiu sociedade à sua imagem e semelhança. Pela importância que o automóvel adquiriu na vida moderna, é possível afirmar que ele encarna o Fantasma da Máquina, Deus Ex Machina, ou uma espécie de Golem que nos tragou a todos e que está sendo o primeiro símbolo a sofrer conseqüências do abalo nos fundamentos do capitalismo, que separam e delimitam riqueza e miséria
O carro visto como um útero metafórico é uma imagem bastante evocativa, pois assim como ele define a extensão do sucesso do seu ocupante, grita estridentemente a dimensão do seu fracasso. Isto num mundo puramente imagético, onde o modelo e o preço são o testemunho mais eloquente da identidade social do proprietário.
Com base na proporção desmedida que o automóvel atingiu tanto factualmente, quanto psicologicamente, foi possível listar algumas dimensões psicosociais onde ele está tão firmemente arraigado, que já não é possível diferenciar os comportamentos normais dos patológicos.
1- Família.
A imagem da Família e do carro foram fortemente conectados pelas propagandas, desde que o marketing descobriu o imenso filão comercial do carro de família. Principalmente no pós guerra, os EUA foram inundados de carrões que supriam as necessidades do segmento da classe média, em franca expansão. O atual declínio no mercado automobilístico americano da demanda familiar pelos carros Sport Utilities-SU, aparentemente representa o fechamento de um ciclo histórico.
2- Status.
A indústria de consumo soube se aproveitar da carga psicológica transferida ao fetiche carro, criando conceitos que extrapolam a funcionalidade. A polêmica entre dois automóveis quase idênticos, porém de fabricantes diferentes, ilustra a questão: entre o Toyota Corolla e o Honda Civic, o último ganha em tudo, exceto no design. O design leva os jovens a preferir o Civic e a superioridade funcional à custa do design mais sóbrio, ganha os consumidores de maior faixa etária.
3- Manifestação exterior de riqueza.
Quando um desconhecido chega a um lugar, ele tem como referencial apenas a sua reputação e esta é dada, ao primeiro olhar, pelo tipo de carro que ele veste. Caso ele chegue ao local numa Ferrari, vira com certeza uma celebridade instantânea. Justificando a fama de símbolo de sedução social, todos os novos ricos compram Ferraris.
4- Velocidade.
O filme Velozes e Furiosos explora à exaustão o fetiche da velocidade, onde você adquire o poder através do carrão esportivo e do número de cavalos que lhe carregam. Para o imaginário masculino, esta simples equação é o bastante para a resolução de qualquer problema existencial, já que as mulheres dizem que o nosso sistema psíquico é constituído de uma chave liga/desliga.
5- Força.
Os humanos são animais fisiologicamente fracos e lentos. Porém, a um simples aperto de pedal, nos tornamos fortes e invencíveis, verdadeiros guerreiros capazes de vencer as batalhas que se desenrolam nas ruas contra outros selvagens, também envergando suas armaduras.
6- Som.
Algumas pessoas, que não têm aparelhos de som em casa, entretanto, no carro instalam verdadeiras parafernálias com potências sonoras equivalentes às pistas de dança.
7- Casa.
No lançamento da Kombi no Brasil em 1957, os marqueteiros procuraram polarizar o imaginário da utilidade do carro usado como casa, quase como uma concretização da metáfora do útero.
8- Esporte e Sedução.
Quando o James Bond comparece a um compromisso social, a simbologia do galante sedutor exige que ele o faça a bordo de um carro esporte, quase sempre bem acompanhado de uma das suas incríveis Bond Girls.
9- Transporte.
A dimensão mais primordial do carro é o transporte, porém dentro de uma visão ecologicamente correta ele deveria ser público. A tendência ao transporte individual foi uma imposição do sistema de industrialização em busca da maximização de lucros, em detrimento das questões ecológicas que na época nem eram pensadas.
10- Proteção.
Não há como negar a importante dimensão de abrigo que o automóvel nos concede contra as intempéries, chuvas, sol, vento, areia, etc.
11- Diferenciação social.
Diga-me com que carro chegas, e eu te direi quem és, ainda mais quando chegas num Rolls Royce Phantom.
12- Sonho de consumo.
Depois de décadas de campanhas publicitárias ensinando as pessoas a sonhar com carrões novos, aprendemos a lição: a felicidade da família moderna começa no instante em que o carro a ela se incorpora. O carro é um dos maiores, senão o maior sonho de consumo moderno.
13- Futuro.
O futuro da sociedade humana está tão imbricado com o do carro, que todas as previsões futuristas de um, têm a ver com o outro. Caso concretizemos o sonho dos carros voadores antevistos no meio do século XX, então teremos seguido a linha temporal do capitalismo atual. Caso as preocupações ecológicas tenham a prioridade que merecem, o futuro do transporte individual e de tudo aquilo que ele representa será uma pálida idéia daquele que hoje temos. O futuro nos reserva o dilema: ou carros voadores, ou trens voadores.
Autor: Isaias Malta
"Porém, a um simples aperto de pedal, nos tornamos fortes e invencíveis, verdadeiros guerreiros capazes de vencer as batalhas que se desenrolam nas ruas contra outros selvagens, também envergando suas armaduras."
ResponderExcluirEsse trecho diz muito a respeito do porque o trânsito mata mais que muitas guerras...
Infelizmente as pessoas usam os carros de maneira irresponsável, e a principal função dele, que é trasportar pessoas, está cada vez mais "obsoleta". Os auto-moveis deveriam vir com um aviso igual ao dos comerciais de cerveja:
"Use com moderação"
muito bom o texto
ResponderExcluirespero que os fabricantes sejam obrigados a colocar o aviso sugerido pelo colega acima e que os consumidores tenham um pouco mais de crítica a respeito da função do automóvel.
a verdade é que a propaganda trata os consumidores como ratinhos mesmo, como se bastasse apertar certos botões. aos amigos publicitários, quero deixar registrado que isto não funciona com todos.