Brasília, o fracasso da Utopia Modernista.

Num infeliz ato de grandeza extemporânea e burra, o presidente J.K. resolveu erigir uma cidade no meio do nada para que fosse a nossa mira do futuro. Criamos a dívida externa e a inflação para transplantar a capital do Rio para o meio do cerrado e hoje amargamos a cidade da fantasia, distante de tudo e de todos, que intoxica os nossos governantes e políticos com uma droga pesada só traficada na ilha da fantasia.

O projeto asséptico de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa foi tomado de assalto por carroceiros, excluídos, sem-terras, sem-tetos, mendigos, maltrapilhos, abandonados, etc. A humanidade não prevista nas ruas planejadas se afoita no plano piloto e se imiscui nas superquadras. Brasília respira graças a ajuda de aparelhos improvisadamente humanos. Brasília existe porque uma horda de párias dorme sob suas ostentatórias paredes de mármore rosa.
Eu visitei Brasília e me intoxiquei com seus ares de maquete. O futurismo das suas avenidas sem pedestres e das suas praças sem bancos não me cativou, assim como a frieza da sua amplidão. Tudo é artificial na paisagem trespassada de linha do horizonte, onde o cerrado acua lá fora, onde o Jalapão e o encontro das águas murmuram que o coração do Brasil tinha que ter sido deixado em paz.

O brasileiro tem uma índole ufanista e prefere aguilhoar a corrupção dos seus políticos, a encarar a realidade da cidade vazia corroída pelo cerrado. Preferimos a Ilha da Fantasia dos cartões postais, a praça dos três poderes e os palácios marmóreos, ao invés da verdade nua e crua de que fracassamos ao transportar o poder para a Terra do Nunca.

Carlos Moreira Teixeira sentencia no seu texto “Liquefazendo Brasília”:

“Em Brasília o asfalto se perde na paisagem enquanto o verde invade o cinza, brotando por sobre o pavimento e mudando o significado de fenômenos banais -- exatamente como a fúria expressa na rodovia Transamazônica sendo engolida pela floresta. É a cidade como um “mar de espaço”, um deserto vegetal que ignora o avanço da arquitetura, permanecendo superior e indiferente, inabalável e descrente de todas as empreitadas que intencionam ocupar o território de forma convencional.”

Clarice Lispector vislumbrou nos primórdios de Brasília o terror que hoje toma conta das nossas vidas (Excertos da Crônica “Visões do Esplendor”):

“Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.”

“Brasília foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais.”

“Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix.”

“Brasília é assexuada. O primeiro instante de ver é como certo instante da embriaguez: os pés não tocam na terra. Como a gente respira fundo em Brasília. Quem respira, começa a querer. E querer, é que não pode. Não tem. Será que vai ter? É que não estou vendo onde. (…) Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá.”

Por: Isaias Malta.

Fontes:
A cidade literária de Clarice Lispector [Urbanamente]
Liquefazendo Brasília. [Vitruvius]