Passada a metade do século XIV, tudo ganha um outro tom. A mudança de iluminação é por um lado o resultado de perturbações acidentais (das quais a mais dramática foi, em 1348-1350, a grande epidemia de peste negra) que provocaram em algumas décadas uma real mutação das maneiras de viver em todo o mundo ocidental. Essa mudança se deve também ao deslocamento, na Europa, dos pólos de desenvolvimento: antes situados na metade norte da frança, eles se deslocaram nas direções sul e leste para estabelecer-se na Itália, acessoriamente na Espanha e no norte da Alemanha. Intervém, contudo, e de maneira muito mais decisiva, modificações que, afetando as fontes de sua informação, permitem ao historiador ver mais claramente as realidades daquilo que chamamos a vida privada. Uma ampla face do véu que as mascarava se rompe durante a primeira metade do século XIV. Por quê?
Porque, em primeiro lugar, um movimento profundo levava então os homens a considerar com crescente atenção e lucidez a natureza das coisas materiais, porque no refluxo de uma atitude que dominara a alta cultura européia durante a Alta Idade Média, o contemptus mundi, como diziam os intelectuais, o desprezo do mundo, as aparências pouco a pouco não pareciam mais tão radicalmente condenáveis por ser enganadoras, por ser sobretudo inclinadas para o mal. Em razão disso, a arte, a arte de figurar os aspectos da vida por meio do volume ou do traço, a arte dos pintores, a arte dos escultores, oscilou, em torno do ano 1300, para o que denominamos realismo. Parece que os olhos se abriram; o artista aplicou-se doravante em transcrever exatamente o que via, usando de todos os procedimentos de ilusão. A pintura, mais capaz de ilusionismo, antecipou-se nesse momento a todas as outras artes, e viram-se aparecer as primeiras representações pictóricas de cenas íntimas. De modo que, desposando o do pintor, o olhar do historiador pode, passado 1350, penetrar no interior da casa, isto é, no espaço privado, da mesma maneira pela qual aí penetrava, algumas décadas antes, o olhar das mulheres curiosas de Montaillou. O historiador, pela primeira vez, dispõe de meios para colocar-se em postura de voyeur, observando o que se passa no interior desse universo fechado, protegido da indiscrição, onde, por exemplo, Van der Weyden colocou a Virgem da Anunciação e o Anjo.
Fonte: História da Vida Privada – Coleção dirigida pro Philippe Ariès e Georges Duby, vol. 2. Pag. 10.
Idade Média, Alta Idade Média, representação, Arte ilusionista, realismo
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