14 de mai. de 2008
O que era a vida privada na Idade Média?
Pode parecer óbvia a indagação, mas aquilo que hoje conhecemos como privacidade, uma propriedade óbvia do dia-a-dia, que nos dá direito a quarto próprio e concede isolamento às atividades de toalete é um fato recente que tomou vulto apenas com a ascensão da burguesia às primeiras luzes do alvorecer da modernidade. Ainda na idade média imperava em máximo grau o monopólio dos espaços coletivos, mas avizinhava-se um fenômeno que tomaria fôlego séculos mais tarde; dos enclausuramentos monásticos surgia a semente do isolamento individual, da necessidade do espaço inviolável que rompesse a lógica do espaço coletivo onipresente.
Para construir uma resposta válida é preciso explorar um pouco a carga semântica que cerca a palavra “privado”, pois é naquele nicho que está refugiado o conceito. Nos dicionários da língua francesa escritos no século XIX, ou seja, no momento em que a noção de vida privada adquiria seu pleno vigor, descobre-se um verbo, o privar, significando domar, domesticar, como no exemplo dado: “um pássaro privado”. Assim, revela-se o sentido, que é o de extrair do domínio da vida selvagem e transportar para o espaço familiar da casa.
Mas o transporte do que é coletivo para o domínio do lar não chega a contemplar o indivíduo, restringindo-se à vida de família, não individual, mas de convívio, e fundada na confiança mútua. Apesar de ainda não haver sido criada a privacidade individual, aquilo que se entendia medievalmente como privado extrapolava em muito a compreensão da civilização contemporânea sobre o “reino do lar”. A família era vista socialmente como uma pessoa, na pessoa do seu chefe, “a cabeça da casa”, sendo que os demais integrantes tinham o dever da obediência ao seu chefe como se vassalos fossem de um pequeno feudo.
Assim, ao rei do lar era facultado matar, estuprar, surrar, expulsar, deserdar, escravizar, em suma, tinha o poder total sobre o seu espaço privado, onde não reconhecia socialmente a existência de outros indivíduos, porque o espaço do indivíduo foi concebido pela burguesia emergente somente séculos depois, como contraponto à lenta decadência da aristocracia, que se havia estruturado dentro dos princípios da privacidade medieval negadores do livre arbítrio individual.
O atual caso Nardoni da suspeita da morte de uma criança pelos próprios pais, estarrece o Brasil só por ter acontecido na classe média e pelos contornos cinematográficos que assumiu, pelo fato insólito da criança moribunda ter sido arremetida da janela de um edifício. Porém em termos históricos, é só recuar até a Idade Média e não haveria crime, uma vez que o soberano do espaço privado familiar tinha todas as prerrogativas de vida e morte sobre seus “protegidos”. Talvez por isso, matar crianças no Brasil seja fato corriqueiro estranhamente normal, com excreção desse caso que ganhou a conotação de aberração pública. A estrutura social brasileira se acha mais aparentada àquela vigente nos feudos europeus, do ao estado burguês consagrado pela Carta dos Direitos Humanos.
Referências: História da Vida Privada – Philippe Ariès e Georges Duby
Idade média, privacidade, história, burguesia, modernidade
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