O último filme “Batman, O Cavaleiro das Trevas” revelou aquilo que não surpreende mais ninguém: na trama do cinema, o personagem coadjuvante é o próprio Batman e astro principal é o vilão.
Na fila para o pagamento do estacionamento do Shopping, ouvindo os comentários dos espectadores, percebi que só falavam na atuação do Coringa, em releitura terminal de Heath Ledger. Hoje sabe-se que na preparação do filme, caiu sobre os ombros de Ledger o desafio descomunal de superar o até então coringa perfeito Jack Nicholson.
O Batman cinematográfico não sobrevive ao mal vilão. Ao contrário dos quadrinhos, onde depois de sucessivas reformas conceituais o homem-morcego foi descarregado de alguns dos seus rígidos princípios morais, o Batman das telas, por se ater a estreitos princípios de conduta, está condenado a vestir eternamente a armadura de personagem coadjuvante.
Eis um dos problemas do Batman, a armadura e o nonsense da sua existência. Vamos tentar imaginar se há um pouquinho de possibilidade de um milionário passar as noites em claro envergando um uniforme desconfortável, apanhando de bandidos. Pela manhã, Bruce Wayne chega na batcaverna todo estoporado de tanto bater e receber socos, pauladas, tiros, pontapés.
Por mais que o cinema seja fantasia, ele exige uma certa dose de realidade e o personagem definido para o Batman até hoje, reveste-o de uma improbabilidade tão grande, que se torna necessário a concorrência de um vilão de peso que funcione como um contrapeso psicopata complementar.
Então, no último filme cujo nome confirma a tendência de retomada de antigas tradições do personagem soturno e noturno, na mais autêntica fidelidade ao morcego inspirador, Batman não chega a ser tão torturado quanto poderia e não chega a ser tão sombrio quanto deveria. Sobra assim, todo o caminho para um vilão que segure as pontas do drama e faça as regras. Ledger além de saber disto compreendia que o sucesso do filme de milhões de dólares pesava sobre suas costas.
Não frustrando os milhões de espectadores, Ledger compôs um personagem que abandonou toda a veia tragicômica do Coringa original e mergulhou fundo nos porões da loucura. O Coringa que reaparece nas telas é doido varrido, suicida e inconseqüente. O ator, para alcançar tal grau de dramaticidade, mimetizou os trejeitos dos dementes, os esgazeares de olhos e os ruídos bocais típicos de profundas patologias psiquiátricas.
Ao contrário dos risos despertados pela atuação do Coringa anterior, interpretado por Jack Nicholson, este coringa deixa o público em silêncio e apreensivo diante de tamanha anormalidade. Ele é um personagem que age no extremo da condição humana. As suas piadas se emudecem e no seu lugar surge a estupefação diante da vida levada aos limites da sobrevivência sob sofrimento psicológico severo.
O último filme do Batman novamente não vale pelo personagem título e sim pelo vilão que se esfarela diante dos olhos dos espectadores. Sintomaticamente a trajetória do homem morcego perpassa a história do império americano: nas décadas de 30 e 40 ele combatia os gângsteres que aterrorizavam as grandes cidades americanas. Em tempos de guerra fria, ele combateu cientistas do mal que ameaçavam explodir o mundo com seus planos diabólicos. Na era atual de cruzada global contra o terrorismo, o Coringa é o terrorista suicida que explode prédios e quer incendiar Gotham City.
O filme revela a atual leitura míope que os americanos fazem do terrorismo mundial, onde os terroristas são coringas enlouquecidos dispostos a tudo, vivendo vidas no limite, sem nada a perder. Os americanos jamais vão renunciar ao reducionismo de Coringas-terroristas nascidos de famílias psicóticas. Eles teimam em ignorar que em sua grande maioria, os terroristas são gestados nos grandes bolsões de miséria, onde grassa a rapinagem de riquezas praticada pela opressão econômica do império americano contra os recantos mais pobres do planeta.
Review: Batman - O Cavaleiro das Trevas
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